Família: o elo da vida

família tem seu próprio estilo de reunião. Tem aquelas festivas, que transformam qualquer acontecimento em carnaval, com direito a bebidas e comilanças; as que aproveitam o encontro para pregar a doutrina cristã; outras que não perdem a chance de discutir negócios, partilhas e até quem vai herdar o título de líder familiar.

Família: o elo da vida
Caricatura do encontro da família Lexinos

Família: o elo da vida

Antonio de Paula Oliveira

 

Todo ano, a família Lexino se reúne: Carlinho Serrote contando histórias completamente desconexas, enquanto as tias espalham fofocas e destilam pequenas vantagens, e o vô Lexino tentando manter a ordem. Entre risadas e blá-blá-blás, fica claro: essa bagunça é o que torna essa família única.

Cada família tem seu próprio estilo de reunião. Tem aquelas festivas, que transformam qualquer acontecimento em carnaval, com direito a bebidas e comilanças; as que aproveitam o encontro para pregar a doutrina cristã; outras que não perdem a chance de discutir negócios, partilhas e até quem vai herdar o título de líder familiar; e, claro, tem as que se reúnem só para o bom e velho esporte nacional: falar da vida alheia e outros assuntos aleatórios, entre uma risada e outra.

Todos os anos, nossa família encontra um motivo especial para se reunir. Não é apenas o desejo de estarmos juntos, mas a necessidade de manter viva a lembrança da nossa matriarca, que já não está entre nós, mas continua presente em cada coração. Celebramos, assim, o centenário daquela mulher de fibra, coragem e zelo, que soube conduzir a prole e deixar um legado de vida luta e afeto. No primeiro ano de encontro, e já estamos no quarto, alguém teve a feliz ideia de criar uma tabuleta dessas que lembram placas de trilhas, apontando direções e destinos. Mas em vez de indicar caminhos geográficos, ela aponta para o coração, lembrando a todos o verdadeiro rumo da vida. Nela se lê em letras firmes e brincalhonas:

“Família é tudo igual, mas a nossa é mais legal.”

E assim entre abraços, lembranças risadas, pequenas discursões e as inevitáveis fofocas de bastidores, seguimos alimentando o elo que sustenta nossa união e mantém viva a história da família. Ano após ano, acrescenta o álbum invisível da nossa memória coletiva.

   Conheço uma família que é só alegria. A parentada fala alto, parece até campeonato de quem tem o pulmão mais forte. Uma tia grita lá da cozinha: "Não foi isso que aconteceu! Eu vi com estes olhos que a terra há de comer!", e logo o cunhado rebate: "Ah, mas você só enxerga quando lhe convém!". Aí pronto: virou comédia de circo, com direito a plateia, gargalhadas e improvisando efeitos sonoros tipo cinema mudo. Entre um "deixa de ser teimoso" e outro "isso é arenga, conversa fiada", a mesa vai enchendo de garrafas e latas vazias, o tom se eleva com gracejos e anedotas. Ninguém briga de verdade; a graça fica no bate-boca escandaloso, mas, no fundo, todos se entendem. A cerveja está gelada e as panelas borbulham: a comilança gostosa estará pronta em breve.

Outra família querida que sempre anima qualquer encontro é a dos Lexinos, ou para ser mais exato a do senhor Osvaldino e dona Silverina. Uma turma divertida que carrega no sobrenome a marca inconfundível da alegria. Dizem os mais velhos que uma garotinha de mente brilhante, um certo dia, disse: "Vô Lexino!". A garotinha chamou o avô de Vô Lexino em vez de dizer vô Osvaldino. Ela se acostumou a chamá-lo assim e o apelido pegou. Essa família, olha, é demais! Parece que funciona no modo "expansão automática". Um primo de segunda geração aparece com a namorada; no próximo encontro vêm a sogra e a cunhada. Aí um da terceira geração aparece com um amigo "só para conhecer"... e pronto: no encontro seguinte, o amigo já está trazendo a própria família, cachorro e tudo, só não traz a cerveja, que ele gosta demais. Aos poucos, os agregados e enxeridos passam a achar que fazem parte dos Lexinos e não perdem mais nenhum encontro.

A tia Neusa chega com a bandejona de pavê consagrado e faz a entrada triunfal:

— Eu não ia vir, não! Estou meio perrengue..., mas fiquei com dó de vocês sem o meu pavê.

Já virou bordão. Sem isso, a reunião não começa.

Logo chega a tia Marta, a fiscal da balança e dos relacionamentos. Assim que põe os pés na casa, ela começa o seu plantão inspecionando os sobrinhos:

— Você está mais magra, fia. Tá doente ou apaixonada?

Ela mesma emenda, sem dar tempo de resposta:

— Se for paixão, cuidado! Paixão emagrece no começo, mas depois engorda.

Tia Marta dá mais uns passos e aponta para um garotinho:

— Esse menino é uma mistura de vô Lexino com a vó Silverina. Tem um jeitinho que vai ser custoso!

Na cozinha, tia Cida exibe sua famosa salada de uva-passa, saboreada com a mesma ternura de um reencontro em família. Mas ela não se abala:

— Eu faço porque é chique. Lá em casa todo mundo adora. Outro dia o Doutor João Ribeiro, aquele Juiz de Direito, foi almoçar lá em casa e acabou pedindo a receita para levar para a esposa.

Todos ficam calados. Ninguém tem coragem de desmentir.

Enquanto isso, no quiosque, monta-se o conselho deliberativo masculino. Na pauta entram política, futebol e fofoca da vizinhança, ocupando o centro da mesa. E, no meio da rodinha, o famoso "Serrote", o Carlinho: aquele sujeito pândego, metido a sabichão, que fala sobre tudo, mas não entende coisica nenhuma. Vai metendo o bedelho a todo momento, até o jeito que acha correto de pôr sal na carne, ele opina.

— Sujeitinho entojado esse tal de Carlinho Serrote. Não entendo como uma menina inteligente como é a Soninha foi se engraçar com um tipo desse — repudia Pedro, limpando a mão no avental de churrasqueiro.

— Espia só, vou abaixar a crista do sambanga... Ô Carlinho Serrote, pode colocar as sacolas de carne e cerveja no freezer!

— Sabe que é, Pedrão? Hoje eu só dei uma passadinha para matar a saudade da parentada. Loguinho já vou embora, vou ter uma reunião com os vereadores lá na Câmara.

Passado algum tempo, o Serrote se esqueceu do que disse e soltou mais uma pérola em bom tom:

— Quando sai a picanha, Pedrão? Prefiro mais mal passada.

Mas ele não contribui nem com uma latinha de cerveja! Come como um estivador, bebe como um camelo no oásis e fala asneiras com convicção de político no palanque.

Contudo, Serrote é persistente até na técnica de embromar. Ele quer participar de todas as rodas de conversa.

— Se eu fosse presidente, acabaria com a inflação em três meses.

— Como, Carlinho Serrote?

— Ah, usaria minha inteligência e poria o plano para acontecer. Decretaria uma lei simples para imprimir mais dinheiro, muito dinheiro.

Ninguém discute para não dar trela ao Serrote. Desviar o assunto é o mais eficaz para deixar o Serrote sem rumo.

Enquanto Pedro coloca mais carvão na churrasqueira, vira a carne, fatia em pratinhos e até serve nas mesas, surge outro personagem inevitável: o cunhado contador de causos. Ele tem três histórias clássicas que se revezam há vinte anos, como a sessão da tarde. Uma delas é sobre pescaria, nem é sobre o peixe gigante que escapa do anzol. É o relato da sucuri que comia os maiores peixes fisgados por ele: "Ela saía da moita sorrateiramente, abocanhava os peixes maiores e voltava para se esconder na moita. Ela é danada, só me deixava os peixes pequenos". Tem a do futebol, que às vezes reveza com a da enchente, quando ele subiu no telhado da casa com a mãe e a avó, carregando-as debaixo dos braços.

Do outro lado da sala aparece o tio Anselmo, o surdo seletivo. Não escuta quase nada, mas, quando quer, ouve até cochicho.

— Esse governo vai cortar as aposentadorias para pagar o rombo do INSS — diz alguém só para deixá-lo irado.

A encrenca está armada.

No meio da zueira, eis que tio Anselmo levanta, dedo em riste, jurando que sabia das maracutaias da política brasileira:

— Governo desajustado! Ele não pode fazer isso com os aposentados! Vamos viver de quê?

Tio Anselmo fica roxo, treme as mãos, o suor escorre frio, mas logo chega o sobrinho pacificador:

— Acalme-se, tio Anselmo! Nem tudo que se ouve é verdade, estamos na onda das fakes! Ademais, lá em Brasília já está rolando a CPMI do INSS. A continuar assim, daqui a pouco irão convocar a família dos Lexinos para depor.

A prima Giselda chega atrasada, como sempre, justificando com desculpas criativas e novas:

— Saí atrasada, não deu tempo de preparar nada para trazer. Queria tanto trazer pudins para a sobremesa, mas precisei acudir a vizinha, que está com o pai internado.

Ninguém acredita, mas todos fingem acreditar, porque o atraso dela é tão tradicional quanto a cerveja do Serrote, que é igual cocô de índio: jamais alguém viu.

No auge do almoço, uma sobrinha casada recentemente resolve puxar assunto sobre a herança, só para sentir o clima:

— E a máquina Singer de costura da Vó Silverina? Quem vai ficar com ela?

— Isso é que é ser encrenqueira! Essa menina não sabe dar um ponto cego e ainda quer saber de máquina de costura! Ara, sô, toma juízo!

Graças a Deus que a tia Marta entrou com sua voz serena e conciliadora. Com aquele jeito firme, mas doce, ela lembrou a todos que a máquina de costura, assim como todos os móveis e utensílios, permanecerão ali, no mesmo lugar. "Afinal", disse ela, "é aqui que sempre nos reunimos. E é daqui que vem a força da nossa história. Tudo isso nos ajudará a manter a nossa família unida, como desejam o patriarca Osvaldino 'Lexino' e a matriarca Silverina. Nossa maior herança será sempre o exemplo de amor e união que eles nos deram. Que os Lexinos continuem sempre unidos, fortalecendo a irmandade que os mantém ligados."

No final do dia, as tias distribuem marmitas, os sobrinhos escapam pela porta dos fundos e os homens juram que da próxima vez vão organizar melhor. Mas, na verdade, ninguém quer mudar nada.

— Cadê o Serrote? — grita o Pedro.

— Me desculpem, queridos parentes, é que tenho um compromisso e já estou atrasado. Amanhã é preto na folhinha e todos sabem: não nasci rico, tenho que trampar bem cedinho.

Tudo isso faz da reunião de família essa instituição sagrada, onde até as brigas são patrimônio cultural familiar. Sem esses encontros, com blá-blá-blás, as mentiras bem contadas, as fofocas requentadas e os trejeitos dos que adoram tirar uma vantagem, seria apenas mais um domingo comum. Afinal, família reunida é tipo novela mexicana: sempre tem o mocinho, o vilão, a tia que chora sem motivo e o primo que sabe de tudo, menos do que está falando.

É nesse palco doméstico que surgem as piadas repetidas do cunhado, as histórias aumentadas do avô e os discursos de política de quem nunca se elegeu, nem a líder do grêmio infantil. Sem esses personagens, a festa perderia a graça; sobrariam apenas as garrafas vazias e o silêncio triste das ausências. Entre abraços apertados e risadas estendidas, no fim, compreendemos que a família é a redenção que dá vida à alma, o carinho e a união que atravessam o tempo e guardam para sempre no coração de cada um de nós.